Confidencial!

CRÔNICADois zelosos funcionários estão no arquivo morto. Desempenham a nobre função de enterrar documentos em desuso, destinados a sair de circulação e morrer no esquecimento. Um deles, curioso, detém o olhar num envelope pardo, com o timbre de confidencial. Sem resistir à tentação, com voz rouca, diz ao companheiro:
– Veja.
– O quê?
– Um ofício.
– Deixe onde está. Não cutuque assombração.
– Vou apenas ler, não resisto à tentação, tenho espírito investigativo. Ouça:
Senhor Prefeito.
Peço vênia para expor a V. Exa. alguns episódios de ocorrências constatadas no prédio da Municipalidade, nos andares inferiores, longe dos olhos do ilustre prefeito, sempre atarefado no seu gabinete com o excesso de trabalho.
I – O abuso verificado, constante, redundou no batismo de algumas salas, de conhecimento ainda restrito, mas que pode chegar ao domínio público na possibilidade de que os fatos desabonadores, contrários ao dever, venham a ser explorados por adversários e levados, em off, à mídia, sempre ávida por notícias bombásticas e escandalosas, que denigrem a honra de personalidades públicas.
II – Para efeito de uma averiguação preliminar que venha a ser feita por determinação de V. Exa. ou mesmo a abertura de inquérito administrativo para apurar responsabilidades, na certeza de que os atos são escabrosos, peço atentar para as seguintes salas:
III – Sala Sussurrante. Em suas dependências são realizadas inúmeras negociatas, com pagamento de propinas. Nela, sentam-se à mesa os servidores encarregados das licitações e vendedores. Ali são efetuadas compras mediante convite, acertando-se vencedores e preços, onde são incluídas as comissões, que podem chegar, dependendo do volume de recursos, a vinte por cento.
IV – O descalabro, que revela a indecência da promiscuidade e a ausência de pundonor, pode ser aferido ao se adentrar a Sala dos Sussurros. Em pleno expediente é possível ouvir os gemidos de parceiros que, esquecidos de zelar pela repartição, entregam-se aos prazeres do corpo, embriagados pela lascívia. Basta abrir a porta para surpreender os amantes em flagrante cena de nudez.
V – Há, ainda, outras salas, muitas, ocupadas por fantasmas. Nas cadeiras, vazias, apenas paletós esvoaçantes, tangidos pelo vento. Os munícipes deixam de ser atendidos de pronto, como deveria ser prática, pois os encarregados cumprem expediente em outras atividades para as quais não foram nomeados, como fugas para papos com amigos nas ruas ou mesmo sessões de cinema.
VI – No aguardo de providências saneadoras, renovo os protestos de estima e consideração.
Respeitosamente José Barnabé.
– É isso aí, companheiro, um retrato da cidade – diz o funcionário que termina a leitura do documento. – E o que aconteceu ao infeliz dedo-duro?
– Agora me lembro, era um sujeito esquisito, desconfiado, bisbilhoteiro, parece que tinha distúrbios mentais. Teve o merecido fim. Foi demitido a bem do serviço público, sumiu, ninguém sabe de seu paradeiro.
– Então, amigo, bico fechado. Vamos sair logo, deixe os mortos em paz. Cemitérios me apavoram, mesmo que sejam apenas de velhos papéis.

GUIDO FIDELIS é jornalista e escritor, assessor de comunicação do Sindicato da Indústria da Construção Pesada do Estado de São Paulo, Sinicesp E-mail: comunicacao

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