No balaio da argumentação pró-reforma, é reiterada a promessa de geração de empregos. Mas que mecanismo explicaria essa relação entre emprego e Previdência, segundo a visão daqueles que defendem a reforma?
A reforma da Previdência vem sendo apresentada como uma espécie de elixir capaz de curar todos os males da economia brasileira. Alega-se de tudo a esse respeito: desde assegurar o equilíbrio contábil atuarial da própria Previdência Social até ser o alicerce para a construção de um próspero futuro para o país. Atribui-se à reforma poderes quase sobrenaturais. Não faz muito tempo, em 2016, o santo remédio consistia em outra proposta de emenda à Constituição Federal, que estabelecia o congelamento dos gastos não financeiros da União por vinte anos. A argumentação era semelhante, e os propalados benefícios, a começar pela retomada do crescimento econômico, também. Em 2017, o novo milagre seria produzido pela retirada de direitos e flexibilização das relações de trabalho, através da reforma trabalhista. Até agora esperamos, em vão, pelos resultados prometidos. A economia, após uma profunda recessão, segue andando de lado. E os empregos… ah!, os empregos. Esses não deram o ar de sua graça. Quando muito, são criadas ocupações de baixíssima qualidade.
Agora, no balaio da argumentação pró-reforma da Previdência, vale destacar a reiterada promessa de geração de empregos. Há quem diga até que não apenas a reforma vai gerar empregos, mas que se trata de uma condição necessária para evitar que o país entre novamente em recessão e, consequentemente, leve a uma piora do mercado de trabalho.
Mas, afinal, que mecanismo explicaria essa relação entre emprego e Previdência, segundo a visão daqueles que defendem a reforma? Apesar de não muito claro, é possível identificar, no rol anunciado de virtudes, dois supostos efeitos positivos que levariam à elevação do emprego: um, o crescimento do investimento privado, e outro, o aumento do investimento público.
O crescimento do emprego, decorrente do aumento do investimento privado (decorrente, por sua vez, da reforma), se daria devido à retomada da confiança empresarial. Um ambiente macroeconômico supostamente mais estável, previsível e favorável, proporcionado por contas públicas em equilíbrio intertemporal e taxas básicas de juros mais baixas, atiçaria o “espírito animal” do empresariado (residente e não residente no país), que faria as inversões em ampliação da capacidade produtiva, geraria empregos, renda, ampliação da arrecadação tributária, num ciclo virtuoso que nos colocaria na rota do crescimento sustentável. Aqui, o elemento-chave seria o retorno da confiança empresarial, que estaria abalada atualmente pela insustentabilidade das contas públicas. Por esse raciocínio, a confiança empresarial, e portanto o nível de investimentos, é função, fundamentalmente, da percepção sobre a situação das contas públicas.
Em primeiro lugar, cabe questionar essa subentendida explicação sobre as motivações relacionadas às decisões de investimento dos capitalistas. Tal decisão resulta fundamentalmente da comparação entre a receita necessária a viabilizar o investimento (que cubra os custos e remunere o capital) e a receita esperada com a realização desse investimento (que, por sua vez, passa pelas expectativas empresariais quanto às vendas futuras). Obviamente, um ambiente macroeconômico estável favorece a decisão de investir, mas jamais é razão suficiente. É preciso que as expectativas quanto à demanda (venda) futura sejam favoráveis. E isso passa, necessariamente, mas não apenas, por expectativas favoráveis quanto ao emprego, à renda e ao crédito.
Ora, todas as políticas que vêm sendo adotadas nos anos recentes, e também as anunciadas pelo atual governo, apontam no sentido contrário: contratos de trabalho mais precários, informalidade, restrição do crédito de longo prazo (por meio de bancos públicos), eliminação das políticas industrial e tecnológica, eliminação de barreiras alfandegárias sem qualquer contrapartida etc. são os elementos do contexto atual. Esperar que o emprego, especialmente aquele de qualidade, seja criado a partir da crença num suposto ajuste das contas públicas é ignorar o que ocorre no mundo real: acirradas disputas comerciais e tarifárias, adoção de programas governamentais ostensivos de estímulo à inovação tecnológica (a exemplo da indústria 4.0), de restrições à venda de empresas – mesmo privadas – a estrangeiros, de políticas abrangentes de compras governamentais, de afrouxamento monetário e de aumento do déficit público. E o que a reforma da Previdência tem a ver com isso?
Em segundo lugar, e talvez o mais relevante: quem disse que essa reforma da Previdência tornará o ambiente macroeconômico mais favorável? Os processos de consolidação fiscal experimentados por diversos países no período pós-crise de 2008 redundaram, via de regra, em um rotundo fracasso. As chamadas políticas de austeridade produziram uma enorme penúria social e não foram capazes de promover a retomada do emprego e do crescimento econômico, nem o ajuste das contas públicas. Ao contrário, como sucedeu na Espanha, na Itália, na Irlanda e em Portugal. Aliás, nesse último, a partir de 2015, houve uma guinada na política econômica e o gasto público passou a ser elemento central na recuperação. Mais que isso, foi a própria recuperação que permitiu a estabilização da relação dívida/PIB e a eliminação dos déficits públicos, pelo incremento da receita fiscal. Recentemente, temos a experiência argentina, até agora malsucedida.
O Brasil, por sua vez, produziu superávits primários durante mais de uma década, e apenas a partir do período da recessão, em 2015, passou a ter problemas significativos, mas conjunturais. A resposta, iniciada ainda sob a gestão Dilma/Levi e aprofundada sob Temer e seu “dream team”, foi a de tentar promover um forte corte de gastos públicos e estabelecer regras estruturais para um novo regime fiscal, com vistas a restaurar a confiança empresarial na política econômica. O resultado tem sido desastroso. Como dito, as políticas de austeridade não têm logrado promover a retomada da atividade econômica. Com o apelido simpático de “fadinha da confiança”, essa estratégia passou a ser questionada até por órgãos de viés ortodoxo no espectro teórico, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI).
Outra suposta razão para a reforma produzir efeitos benéficos ao emprego seria o aumento do investimento público, que decorreria da redução de despesas correntes ensejada pela reforma. O raciocínio é: gasta-se menos com a Previdência, tem-se mais para a realização de investimentos em infraestrutura. Nesse caso, estamos falando de qual horizonte temporal? Curto prazo? Longo prazo? Podemos supor que a queda na demanda agregada provocada pela queda no valor pago de benefícios fará o Estado dispor de recursos adicionais para investir mais? Se é assim, por que isso não está ocorrendo agora? Afinal, temos a Emenda Constitucional 95/16, e desde sua implementação o investimento público só despenca. E por que logramos crescer e gerar superávits por anos a fio sem que essas reformas tivessem sido feitas? Quem garante que esses recursos (a anunciada “economia” de R$ 1 trilhão), se forem subtraídos dos beneficiários da Previdência, serão utilizados para o investimento público? Quem garante que não serão apropriados na forma de serviço da dívida pública ou de redução de impostos?
É importante salientar que não havia e não há uma trajetória explosiva do gasto público no período recente da história econômica do país. Há, sim, uma queda brusca da receita fiscal associada a questões de ordem conjuntural no início, e acentuada posteriormente pelas medidas implementadas que só intensificaram a crise econômica. E isso ocorre, sobretudo, em razão da queda na atividade econômica. O corte nas despesas, nesse contexto, só agravará a situação de debilidade da demanda agregada.
Por fim, cabe dizer que, de fato, há um envelhecimento da população brasileira. Há, também, um aumento da longevidade. Isso é indiscutível. Mas não se trata de um cavalo de pau demográfico. É um processo lento e, neste momento, estamos no auge do chamado bônus demográfico, com a maior parcela da população em idade para trabalhar. Contudo, estamos desperdiçando essa potencialidade.
Em vez de mobilizarmos nossa energia no debate de uma reforma proposta de forma abrupta, que exclui ou dificulta o acesso ao direito à proteção social, reduz os valores dos benefícios e, no longo prazo, aponta para o fim da Previdência pública, com sua substituição pelo sistema de capitalização, deveríamos estar engajados para assegurar o pleno emprego de nossa força de trabalho e promover o aumento da produtividade. Esses elementos, sim, constituiriam o caminho para a acumulação de recursos que, posteriormente, permitiriam o financiamento da Previdência em outras bases.
O debate necessário sobre as mudanças em nosso sistema previdenciário, como de resto em nosso sistema fiscal, deve ser feito de outra maneira, envolvendo primordialmente o principal ator social por ela afetado, qual seja, a classe trabalhadora organizada. Além disso, caberia, respeitando-se os marcos regulatórios/institucionais de uma economia com as características da brasileira, que esse processo se desse no âmbito de uma grande negociação nacional, num ritmo compatível com essa participação e sem o apelo fácil a ameaças infundadas de fim de mundo, que estão longe de aportar a racionalidade necessária para lidar com algo tão relevante para a maior parte de nossa população.
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)
Paulo Jager é economista, supervisor técnico do Dieese
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