Por Cátia Santos
O acaso costuma ser, na arte, um bom conselheiro e assim parece confirmar-se com a história de “Honeyland”, este documentário originário da Macedónia do Norte.
E foi por acaso que Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanou se encontraram com Hatidze, a estrela de “Honeyland – A Terra do Mel”.
Acabado de estrear nos cinemas portugueses, mais precisamente a 20 de agosto, a primeira obra de ambos os cineastas é, ao mesmo tempo, o primeiro filme na história dos Óscares a ser nomeado para Melhor Filme Internacional e Melhor Documentário.
A história é simples e o documentário até na sinopse não esconde a sua pureza de espírito: uma mulher nos seus 50 anos de vida, Hatidze Muratova, é uma apicultora tradicional que fala com as abelhas, considerada a última mulher a carregar consigo uma tradição que lentamente desaparecerá.
Isolada numa remota aldeia de montanha, Bekirlija, perdida no coração dos Bálcãs, esta anônima de origem turca viveu toda a sua vida naquela região e fala com as abelhas.
A surpresa que o espectador terá ao perceber qual é o trabalho de Hatidze deverá ter sido a mesma dos realizadores, ao darem de caras com uma mulher que vive sozinha com a mãe numa casa miserável para os padrões da dita civilização ocidental e tem nas abelhas o seu ganha-pão.
“Honeyland – A Terra do Mel” é um documentário, mas também um processo longo de desenho que teve início em 2015 quando a ideia era “apenas” filmar um documentário sobre a região que circunda o rio Bregalnica e focar as questões ambientais e os impactos do homem na Natureza.
Um dia depararam-se com o rasto de Hatidze, personificado nas suas abelhas, e perguntaram nas redondezas até a encontrarem. Entre esse momento e a concretização do projeto, passaram-se três longos anos, incluindo um ano inteiro de edição.
A beleza deslumbrante de “Honeyland – A Terra do Mel” não se queda apenas pelo modo desprendido com que é filmado, mas continua em tudo aquilo que o rodeia. A equipe ficou com 400 horas de filmagens nas mãos e, curiosamente, não percebiam uma palavra da maioria dos diálogos que existem nas imagens, até porque Hatidze ganha vizinhos novos, nômades, com quem tem longas conversas e discussões, mas falam em turco.
Na edição, a opção passou por ver tudo sem som, mesmo depois de ter sido feita a tradução e de os realizadores terem sentido que estavam a ver o filme todo de novo. É nas escolhas que se faz o documentário portentoso e humano que é “Honeyland”.
Muitas são as vezes em que o espetador se esquecerá de que estão presentes outras pessoas com câmaras na casa de Hatidze ou quando esta partilha momentos de pura ternura com um dos filhos do vizinho.
O brilhantismo de “Honeyland” é ter-se conseguido purificar junto de Hatidze, a mulher que nem quando a família de nômades que acampam no terreno perto de sua casa e lhe tentam roubar a arte, alguma vez perdeu a bondade que se lhe é intrínseca.
“Honeyland”, não tece julgamentos e não narra em absoluto, não tem voz-off, mas é nas escolhas que faz que escolhe a sua narrativa, claramente este é o produto de uma ou de várias ideias que trazem ainda consigo muita da ideia inicial dos realizadores para o primeiro documentário, o que não incluía Hatidze.
“Honeyland” é um documentário que fala sobre temas universais, não precisa de se saber falar o dialeto turco para se perceber perfeitamente o que é que está em causa. Neste ínfimo, apesar de belíssimo local, encontra-se o tubo de ensaio da humanidade tal como a conhecemos, quando o puro é invadido pela ganância.
O documentário apenas olha para essa relação de forças com o mesmo deslumbramento com que os seus protagonistas vivem as suas pacatas vidas diárias. Hatidze junto das suas abelhas, falando com elas, chamando-as, sem proteção alguma na cara ou nas mãos, sempre ilesa porque aprendeu a falar a linguagem da natureza.
Uma mulher que vive na mais completa pobreza material, sem água, luz ou comunicações, a quatro horas da capital da Macedónia do Norte, Skopje, onde vai vender o seu mel. Uma mulher que vive só na maior parte do tempo, mas traz consigo a felicidade de estar em perfeita sintonia com a terra que a rodeia.
Para ela metade do mel, para as abelhas a outra metade, mas apenas até ao momento em que este perfeito equilíbrio é interrompido pela necessidade do vizinho de fazer dinheiro rápido com o mel e tentar produzir maciçamente mel. Hatidze vê-se a braços com a escassez e com a destruição do frágil ecossistema que é a sua casa, mas nem nessa altura fica amarga ou destrutiva, apenas um pouco contrariada e incrédula.
“Honeyland” é um filme-documentário obrigatório, por toda a mensagem que carrega consigo, pelo seu deslumbramento com o desconhecido, pela vontade de mostrar, de adaptar, de arriscar, com uma linguagem própria, vincada e, sem nunca esquecer, a capacidade de viver num meio extremamente inóspito com duas mulheres que vivem isoladas há muito tempo.
Intimamente próximo do cinema vérité e bebendo das tradições do documentário moderno, gera-se numa capacidade de filmar a intimidade destas gentes que é emocionante, pode chegar-se a questionar se está mais alguém naquele espaço para além delas e da câmara. Uma capacidade de confiança mútua, de curiosidade, de descoberta, que sem qualquer dúvida saem da tela para o espetador, é uma força que se sente para lá dos tempos.
“Honeyland” é um documentário com vida dentro, com gente, com caminhos novos, com alma e coração, certamente com muitos sacrifícios, mas sem lamentos.
Segue em frente como os seus protagonistas, fica em silêncio como quando Hatidze fica novamente só, sem os seus vizinhos barulhentos que tanto são uma bênção pela companhia como uma praga por tudo o que de negativo sobre a humanidade trazem consigo.
Até nesse remoinho Hatidze verá beleza e vida e por isso a relação especial que desenvolve com as crianças da família, os membros que ainda conseguem ver a beleza da sua arte, por exemplo, os que ainda estão prontos para aprender sem a mácula do mundo dito moderno.
A questão que fica no fim de se assistir a “Honeyland – A Terra do Mel”: é Hatidze que se encontra isolada ou são os outros, a humanidade, o mundo ocidental desenvolvido, que está vazio e isolado de Hatidze?
O documentário mudou a vida de Hatidze, os realizadores prometeram-lhe uma casa e o sucesso internacional garantiu que conseguissem cumprir essa promessa. A domadora de abelhas viajou pelo mundo, pelos festivais, com a mesma beleza e pureza com que encheu a tela em “Honeyland”, depois voltou às suas abelhas. Pelo menos enquanto o mundo não lhas tirar por completo, cego e absorvido por uma corrida que não se compadece com sentar e esperar ou respeitar o ritmo do mundo natural.
“Honeyland – A Terra do Mel” estreou a 20 de Agosto.
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