Fé e tradição: Santo Amaro da Imperatriz revive a Festa do Divino |
(02/06/2017) Publicado no Prefeitura Municipal de Águas Mornas
Toni Jochem
Mestre em História
Há 163 anos… Começa nesta sexta-feira, 02 de junho, em Santo Amaro da Imperatriz (SC), uma das mais tradicionais festa do Divino do país. Neste ano, ela chega à 163ª edição e mais uma vez vai reunir uma multidão nas ruas da cidade e no entorno da Igreja Matriz. A festa termina no dia 05 de junho, segunda-feira – Feriado Municipal.
OS SÍMBOLOS DA FESTA

Em Santo Amaro da Imperatriz, o ciclo dos festejos iniciados no dia da Páscoa é composto de diversos símbolos, dentre os quais a coroa e o cetro, que deixam de ser “símbolos do poder temporal do ‘imperador’, para constituírem símbolos do próprio Espírito Santo e objetos de veneração e culto”[1]. Além da coroa e do cetro, em Santo Amaro são utilizados os seguintes símbolos:
Santo (Mt. 3, 16) em seu símbolo maior. Representa a Terceira Pessoa da Trindade, manifesta no batismo de Jesus Cristo, no Rio Jordão, por João Batista. Em Santo Amaro, a pomba do Divino é esculpida em madeira, policromada, representada com as asas fechadas sobre um mastro.
As figuras do Menino Imperador do Divino e da Menina Imperatriz e sua corte relembram o culto popular da Festa de Coroação do Imperador do Divino Espírito Santo, iniciado em Portugal pelo rei D. Diniz e pela rainha Isabel, durante o século XIV. Esse casal é formado quase sempre por crianças ou adolescentes, normalmente filhos dos festeiros ou de seus parentes próximos. O casal que representa o Imperador e a Imperatriz veste-se com figurinos que remetem à Corte portuguesa.
Corte Imperial
O ciclo do Divino Espírito Santo é rico em tradições de base religiosa. Elas fazem parte da cultura e se enquadram no que poderíamos denominar de patrimônio cultural imaterial. As mais diversas regiões brasileiras comemoram o ciclo do Divino de formas diferentes e com significados peculiares. Em Santo Amaro da Imperatriz, no século XIX, os festejos eram organizados pela Irmandade do Espírito Santo; com a dissolução da citada entidade religiosa, a administração da paróquia assumiu a sua organização e promoção.
No interior da igreja, em algumas ocasiões, é executada a Cantoria do Divino:
Cantoria do Divino Espírito Santo[5]
I – Oh! Divino Espírito Santo! Em Deus por Natureza;/ Tens as virtudes do Altíssimo/ Traz ricos dons por riqueza…
II – Vem vindo o Espírito Santo/ Trazendo a Vossa cantoria;/ Também traz em seu poder/ A paz, saúde e alegria… III – Oh! Senhor dono da casa/ Abre a porta e deixe entrar;/ Com a Bandeira do Divino/ Em suas graças abençoar… IV – Vem conduzindo a Bandeira! De uma longa caminhada;/ Acompanhando e bem vindo/ Vos bendizei Vossa chegada… V – Dê-me a licença de entrar/ dentro de Nossa morada;/ Com a chegada do Divino/ E pede a mente e sabedoria… VI – Ao chegarem em sua casa! Tenha a residência preparada;/ Com os devotos em oração/ O Espírito Santo faz sua casa morada… VII – Dentro de Vossa morada/ Veio o Divino Espírito Santo;/ Com os seus dons vem nos trazer/ No seu estrelado Santo Manto… VIII – Bendito aquele que vem/ Do Deus Eterno das Alturas;/ Com suas graças abençoar/ No céu, na terra, as criaturas… IX – Bendizei-vos Vossa chegada/ E na chegada tocam os sinos;/ Por Vosso amor, Vos cantaremos/ E no altar cantam os Hinos… X – Te damos glórias ao Senhor/ Do Divino e suas crenças;/ Vossas Mensagens e Prosperidade/ Nos defendei todas as doenças… Xl – Venho pedir-vos uma esmola/ Pra este Senhor da Verdade:/ Que é uma das Três Pessoas/ Da Santíssima Trindade… XII – A esmola que Vós destes/ É para o Divino Criador;/ Quem vos há de agradecer/ Que é o Deus Divino Salvador… XIII – Se doares uma prenda/ E ofertando pelos seus;/ Agradecemos em Vossa Festa/ Se mandares o pão por Deus… XIV – Oh! Divino pede a esmola/ Mas não é por precisão;/ Pede pra experimentar/ Nos seus devotos quem são… XV – Aqui dentro do Santuário/ Em que viemos compreender;/ Sua oração o pão diário/ Para o Divino oferecer… XVI – Antes da Virgem Maria/ E a Seu Filho concebido;/ Pelo poder do Santo Espírito/ E como havia prometido… XVII – O Seu Filho Jesus Cristo/ Que nasceu da Virgem Maria;/ Que elevou-se até o céu/ Pra nós todos prometia… XVIII – Sobre nós veio e disse/ Entre Luz e Salmos e Cantos;/ Como o Pai Me Enviou/ E recebi o Espírito Santo… XIX – Sobre a noite veio a luz/ Com suas graças concebidas;/ Com seu poder nos faz crer/ Em Sua Luz a nova vida… XX – Sua luz desceu do céu/ Tão penetrante e eficaz;/ Sobre herança nos deixou/ A nova vida, amor e paz… XXI – E vai partindo a comitiva/ Pelos caminhos sua Bandeira;/ Que trouxe a paz em Vossa casa/ Aos filhos, esposa e companheira… XXII – Que com Deus, fiques pro ano/ Até quando ele nos voltar;/ E na chegada do Divino/ Nos sete dons nos ajudar”[6]. |
Instantes depois, o padre retira a coroa da cabeça do Imperador, entrega-a ao Casal Imperial, o qual a coloca sobre a salva e a oferece ao Divino Espírito Santo, colocando-a solenemente sobre o altar, onde permanece durante a celebração da missa que segue normalmente seu ritual. Após a oração da Comunhão, já no término da celebração, o Casal Imperial retoma a coroa que está sobre o altar e a entrega ao padre para que efetue a Coroação do Imperador.
Dada a bênção final, as Bandeiras Petitórias acompanhadas pela Corte Imperial e pelos padres, deixam em procissão o recinto da Igreja Matriz e já no pátio assistem shows pirotécnicos, entre os quais o “Glória ao Divino” que consiste em um retângulo de madeira dentro do qual está enrolado uma pano. Aceso o pavio, o retângulo se ilumina com os fogos finalizando com o desenrolar do pano no qual aparece pintada a pomba do Divino Espírito Santo. Ato contínuo, em meio à multidão que abre passagem, a Corte Imperial segue para o salão de festas, acompanha pela Banda de Música. No salão, é preparado o ‘Império’, primorosamente decorado, onde avultam ornamentações que remetem ao Espírito Santo, constando neste local o trono do Imperador. Neste recinto, permanecem expostos para “veneração”, o casal de Imperadores, a Corte, as Bandeiras Petitórias, a coroa do Divino, o cetro, a espada. Conferindo ainda mais brilho e encanto ao “Império”, a banda de música faz sua apresentação.
Esse trono improvisado é altamente luxuoso, sofrendo alterações a cada ano, durante a Festa do Divino. Cada casal “festeiro” deseja fazer sempre o melhor. O trono é decorado com flores, grama, chafariz, carruagens, gaiolas de pombas, etc. Nele a família imperial recebe os cumprimentos. O luxo da Corte e de seu Império faz com que a Festa do Divino de Santo Amaro da Imperatriz seja considerada “a mais pomposa do Estado”[7] de Santa Catarina.
As massas são outra peculiaridade da Festa de Divino Espírito Santo. Feitas de pão sovado, com ingredientes da melhor qualidade, são trazidas pelos devotos como pagamento de promessas por graças recebidas, durante o ano, ou adquiridas pela organização do evento em uma padaria da cidade; todas são colocadas sobre uma mesa, onde permanecem expostas até o último dia da festa, segunda-feira. Neste ritual é feito, também, o oferecimento de massas em formato de partes de corpo humano (cabeça, braços, pernas, coração, pulmão…) e de animais. Nesta ocasião, são leiloadas e arrematadas pelo festeiro do próximo ano. Ele as distribui aos pobres da comunidade numa imitação do bodo real realizado na ocasião da instituição dos festejos do Divino Espírito Santo, em Portugal.
Os fiéis costumam adquirir essas massas e de posse dela, deslocam-se até a Corte Imperial. Lá, ajoelham-se diante do Casal Imperial e beijam a pomba em cima no cetro, que fica na mão da Imperatriz. Após o ritual, não raras vezes, as massas adquiridas pelos fiéis são por eles oferecidas ao Espírito Santo e, por isso, devolvidas para que outros possam dela se utilizar no mesmo cerimonial até o fim da festividade.
O ritual do Cortejo Imperial e da Missa da Coroação é repetido no domingo pela manhã – às 9h30min – e à noite – às 19h – , e na segunda-feira pela manhã – às 9h30min. Em cada cortejo, a corte imperial troca de figurino tornando o evento ainda mais atrativo.
No domingo às 12h, a Família Imperial e seus convidados promovem um almoço festivo num dos salões paroquiais, a exemplo da “função” ou “sopa do Espírito Santo” existente nos Açores[8]. É um grande banquete oferecido pelo festeiro para os seus convidados especiais.
No domingo, antes do término da missa das 19h, o Casal Imperial anuncia o nome de seu sucessor para o próximo ano, o qual foi previamente convidado. Assim que anunciado, o novo Casal Imperial se desloca ao presbitério onde recebe os cumprimentos do Casal Imperial e dos padres e depois acompanha solenemente o cortejo para o Império instalado no salão paroquial, onde recebe os cumprimentos de parentes e amigos.
Ressaltamos também que, apesar da documentação histórica por nós consultada evidenciar a inclusão da segunda-feira, após o dia de Pentecostes, como um dos dias destinados à realização da Festa do Divino Espírito Santo desde a sua criação, em 1854, a história registra que a sua oficialização, enquanto feriado municipal em Santo Amaro, data somente a 08 de maio de 1997. Naquela data, o então prefeito Pedro Martendal sancionou a Lei de Nº 1.183, instituindo “como Feriado Municipal, de conotação cultural, a segunda-feira destinada às atividades do Divino Espírito Santo”[9].
Na missa da segunda-feira, oficiada às 10 horas, é realizada a coroação do Novo Imperador. O novo casal e seus convidados participam do cortejo, iniciado às nove horas e trinta minutos. Chegando à Igreja Matriz, o Imperador e a Imperatriz atuais cedem seu lugar no trono ao novo casal. Neste local, os novos soberanos recebem o manto imperial de seus antecessores, sendo depois realizada a solene coroação. E do trono, eles participam da missa. Ao término da cerimônia religiosa, o cortejo, com os novos imperadores coroados, se dirige ao Império.
É interessante notar que a partir do ato de coroação, tem-se a presença de dois imperadores, um efetivo, coroado no ano anterior, cujo “mandato” está se extinguindo, e outro, também efetivo porque coroado, cujo mandato, porém, ainda não começou.
Na segunda-feira é promovido um almoço festivo, no entanto, desta vez, é oferecido pelo casal festeiro recém-nomeado, aos seus convidados. Neste mesmo dia, convertido em feriado municipal, dá-se um curioso ritual, denominado como “O Enterro dos Ossos”, geralmente a partir das 15 horas. Ao som da banda de música, as Bandeiras Petitórias, a coroa, o cetro e a espada são conduzidos em procissão pelas duas famílias imperiais, em trajes menos pomposos, e entregues ao pároco, na capela interna da casa paroquial. Depois da entrega das insígnias, o ritual consiste num animado e descontraído baile público abrilhantado pela banda de música pelo pátio e salões paroquiais. Mas até pouco tempo não era assim[10].
Após mais de um século e meio de sua instituição, a Festa do Divino Espírito Santo permanece como o grande referencial religioso-folclórico em Santo Amaro da Imperatriz. Inserida na cultura popular, a Festa do Divino tem representações religiosas e profanas, as quais incidem no modo de ver e compreender o mundo, por parte da comunidade local. Sendo exemplo ímpar da matéria constituinte do modo de ser brasileiro é conservado com apreço pela sociedade catarinense, com especial destaque em Santo Amaro da Imperatriz.
Historiador Toni Jochem no coro da Igreja Matriz dedicada a Santo Amaro, em Santo Amaro da Imperatriz-SC, durante a Missa da Coroação da 161ª Festa do Divino. Fotografia de Hélio João Machado, de maio de 2015.
NOTAS DE FIM
[1] LIMA, Manuel C. Baptista. “A Introdução do Culto do Divino Espírito Santo nos Açores e a sua influência na simbólica e arquitetura religiosa dos séculos XV e XVI”. In: Os Impérios do Espírito Santo e a Simbólica do Império. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1985, p. 166.
[2] Cf. MICHELUTE, Maria Eliete de Abreu. A Festa do Divino Espírito Santo em Santo Amaro da Imperatriz. Florianópolis: Garapuvu, 2000, pp. 45-6. Cf. também MARTINS, Celso. Tabuleiro das Águas. Florianópolis: Ed. Recriar, 2001, p. 232. Esse costume de se levar uma espada no cortejo também é observado nos Açores, hoje praticamente em desuso. Cf. SIMÕES, Manuel Breda. Roteiro Lexical do Culto e Festas do Espírito Santo nos Açores. Maia: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987, p. 89.
[3] Ex-voto (do latim: por força de uma promessa, de um voto; ou a abreviação de ex-voto suscepto – o voto realizado) pode ser um objeto – nesse caso, uma massa representando partes do corpo que estavam adoecidas e foram curadas etc. São expostos para visualizar o pagamento de promessas e/ou agradecer uma graça alcançada.
[4] As Bandeiras Petitórias são classificadas em bandeiras ricas e bandeiras pobres. As primeiras são ricamente adornadas e as segundas não ostentam tanto luxo. Somente as Bandeiras Ricas são conduzidas no Cortejo Imperial.
[5] Letra e música de Antônio Narciso e adaptação, arranjo e estrofes de Braz Campos de Araújo.
[6] MARTINS, Celso. Tabuleiro das Águas. Florianópolis: Ed. Recriar, 2001, pp. 237 e 238.
[7] NUNES, Lélia Pereira da Silva. “Festa do Divino Espírito Santo – Resgate de uma tradição”. In: Anais da 2º Semana de Estudos Açorianos. Florianópolis: Editora da UFSC, 1989, p. 100.
[8] Função, nos Açores, designa especialmente o almoço/jantar, no qual é servida a sopa do Espírito Santo, que o Imperador oferece aos convidados no domingo em que se realiza a coroação. Cf. SIMÕES, Manuel Breda. Roteiro Lexical do Culto e Festas do Espírito Santo nos Açores. Maia: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987, pp. 99 e 165.
[9] Artigo 1º da Lei Nº 1.183, de 08 de maio de 1997, da Prefeitura Municipal de Santo Amaro da Imperatriz. Arquivo da Prefeitura Municipal de Santo Amaro da Imperatriz.
[10] Até pouco tempo atrás o ritual do enterro dos Ossos consistia do seguinte: o festeiro era colocado por populares num caixão de madeira enfeitado com flores e conduzido em meio ao povo. Em seguida, outras pessoas se revezavam no caixão, inclusive o festeiro recém-nomeado, enquanto o “préstito” seguia por algumas ruas da cidade. O “Cortejo Fúnebre” era caracterizado pela distribuição gratuita de chope, conduzido na carroceria de um caminhão. Além de beber à vontade, os participantes não raras vezes jogavam o chope uns nos outros e nos que passavam pelas imediações, numa grande brincadeira. Depois, o desfile retornava ao pátio da Igreja Matriz.