COMBINANDO COM O JOÃO DE LÁ
Em alguns momentos da minha vida profissional, precisei acompanhar a fabricação de frascos e objetos de plástico. Acabei conhecendo desse ramo o suficiente para avaliar se alguma ideia nova é viável ou não. Conhecimento muito útil, que me permite excluir projetos inventivos quando já sei que as máquinas não conseguem fazê-los. Isso me poupa tempo, despesas e aborrecimentos.
Um disco voador, que meu irmão e eu projetamos e executamos quando éramos crianças, não dependeu desses conhecimentos. Usando material improvisado em casa, recortamos uma lata com forma de hélice e fizemos no meio dela dois furos, que permitiam encaixá-la em dois preguinhos sem a cabeça, fixados em uma das extremidades de um carretel de linha. Enrolamos no carretel um cordão conhecido como barquinha, e seguramos o conjunto por meio de um suporte de madeira introduzido no furo do carretel. Puxando com força o cordão, a hélice girava junto com o carretel, até se destacar e sair voando como se fosse um disco. Funcionava bem melhor que um modelo de plástico parecido, lançado no mercado dois anos depois.
Num trabalho inventivo recente, consegui incluir vinte ferramentas em uma única chapa metálica de 6×6 cm. Uma verdadeira caixa de ferramentas quebra-galho, para pequenos serviços, contendo 4 chaves de fenda, 3 chaves de porca, 3 limas, apontador de lápis e grafite, todos os instrumentos para lidar com fios elétricos, removedor de grampos, abridor de garrafas, abridor de latas, perfurador de latas, removedor de pregos. Tão pequena e tão cômoda, que pode ser transportada em algibeira, bolsa, mochila, porta-luvas, até entre as páginas de um livro ou caderno.
Agora vem a decepção. Eu a projetei em função do que conheço sobre máquinas para injeção de plástico; mas ela tem de ser feita em metal, e eu não conhecia algumas limitações da indústria metalúrgica, maiores que as do plástico.
(E o que tenho eu a ver com a sua falta de conhecimento técnico?)
Se eu lhe conto tudo isso, não é para enaltecer minhas aptidões nem lamentar as que não tenho. Minha função, nesta coluna, é atirar flechas, e não posso atirá-las em mim mesmo. Não me consta, pelo menos, que um infeliz tenha conseguido o suicídio crivando-se de flechas. Portanto, é bom alguém por aí se preparar, porque só me falta completar a pontaria e disparar.
Quando alguém elabora um projeto, mas esquece, desconhece ou deixa de avaliar um dado importante, um obstáculo a ser removido, um cronograma a ser seguido, uma verba a ser conseguida, o mais provável é não dar certo. Projetos pequenos, projetos grandes, megaprojetos, dá no mesmo. A remoção ou superação dos empecilhos precisa ser avaliada na fase de elaboração e combinada com os agentes, do contrário poderá tornar-se inviável um projeto em andamento. E quando o projeto é do governo, onde ninguém é dono de nada e age como se fosse dono de tudo, inclusive do que é meu, a probabilidade de dar errado torna-se quase uma certeza.
Assim as obras inacabadas no Brasil vão se multiplicando: Parques eólicos concluídos, sem combinar a rede de transmissão; pista de aeroporto concluída, sem combinar as instalações para embarque e desembarque; ferrovia para exportação, sem combinar o porto correspondente; trem de alta velocidade, sem combinar os passageiros para ocupá-lo; montanhas de computadores para as escolas, sem combinar o treinamento dos professores; máquinas caras enferrujando em almoxarifados, por falta de combinar as instalações; bolsas de estudos no exterior, sem combinar o envio do dinheiro. E a lista ainda iria muito longe.
Se alguém quer saber quem é culpado por tudo isso, desista, pois nessa área ninguém é dono de nada nem responsável por nada. Punição? Nem pensar, está todo mundo em casa. Solução? Nenhuma possível enquanto um bando de aventureiros age como se não existisse o João de lá.
(E essa agora! Quem é esse João, que surgiu abruptamente do nada?)
Conta-se do nosso saudoso Garrincha que ele não conseguia aprender os nomes dos adversários estrangeiros, e chamava a todos de João. Um dia o técnico explicava ao time uma jogada genial, em que uns tinham de fazer isso mais aquilo, outros deviam driblar não sei quantos, e afinal um último estaria à espera do passe (fora da “banheira”, é claro) para chutar em gol. Garrincha indagou do técnico:
— Sêu Feóla, sem que mal lhe pergunte, o senhor já combinou isso tudo com o João de lá?
Uma variante do caso é “combinar com os russos”, mas dá no mesmo quando se trata de combinações imprescindíveis. Falta combinar ou PACtuar muita coisa com o João de lá. Ele sempre existe, e disposto a fazer exatamente o contrário.
(*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim |