Isabel Cristina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon-Duas Sicílias e Bragança, brasileira, casada, natural do Rio de Janeiro, devidamente qualificada nestes autos, e Louis Philippe Marie Ferdinand Gaston, casado, natural de Neuilly-sur-Seine, França, por meio de seus advogados, devidamente qualificados e registrados na Ordem dos Advogados, com escritório situado na cidade do Rio de Janeiro, vêm perante este tribunal apresentar os protestos em face do Poder Judiciário tendo em vista que, passados 123 anos, ainda não conseguiu julgar e decidir se, afinal de contas, este casal, carinhosamente tratado pelo povo brasileiro respectivamente como Princesa Isabel e Conde D´Eu, sempre foi o verdadeiro proprietário de um espaçoso casarão, localizado à antiga Rua Guanabara, hoje denominada Rua Pinheiro Machado, 30, no bairro de Laranjeiras.
O imóvel é conhecido atualmente como Palácio Guanabara, sede do governo do Rio de Janeiro. Até 15 de novembro de 1889, era simplesmente denominado de O Palácio ou Paço Isabel. Após essa data, com a Proclamação da República e a extinção do Regime Imperial no País, numa decisão de força e espetacularmente ilegal, os bens da família imperial foram confiscados, tornando a todos – Imperador dom Pedro II e seus herdeiros – párias na sociedade, obrigando todos a pedir exílio na Europa, como se bandidos fossem.
A expropriação da residência de morada do casal imperial foi uma medida arbitrária e promovida sem qualquer base legal. O imóvel é uma edificação com 5.740 metros quadrados de área construída, em estilo neoclássico francês, muito em moda e de bom gosto no século 19 entre as elites econômica, política e cultural do mundo europeu e também do Brasil.
A construção foi integralmente adquirida e paga com recursos financeiros auferidos pela princesa e pelo consorte, não havendo sido usado sequer um vintém de dinheiros dos cofres do Império.
Excelentíssimo senhor doutor magistrado, o terreno onde este imóvel foi construído pertenceu originalmente à família de Domingos Rozo, no início do século 19. Por ocasião de sua morte, a propriedade rural foi dividida em chácaras entre seus herdeiros necessários. Em 1852, uma dessas chácaras foi vendida ao senhor José Machado Coelho, que, na propriedade, construiu uma boa casa de alvenaria.
No Ano da Graça de 1864, a princesa Isabel e o conde D´Eu, devidamente qualificados nestes autos, seguindo uma tradição secular das melhores Casas Imperiais do mundo, decidiram contrair núpcias. A solenidade de casamento, no civil e na igreja católica, religião oficial do Estado brasileiro à época dos fatos, transcorreu, em animada e prestigiada solenidade, na data de 15 de outubro de 1864, com grande repercussão internacional.
Nos meses que antecederam à cerimônia, a herdeira do Trono do Brasil e seu futuro esposo, com o patrocínio financeiro do Duque de Nemours, da França, progenitor do senhor conde D´Eu, procederam a reforma e a ampliação da espaçosa residência adquirida da família Coelho, deixando a construção num padrão arquitetônico e de dimensões dignos dos futuros imperadores do Brasil. Não só isso. O casal adquiriu vários lotes no entorno, ampliando a área da propriedade.
No dia do casamento, como a “Imprensa Oficial” e os livros de história registraram, nas ruas, o povo festejou as núpcias da princesa do Brasil com o consorte francês. A cerimônia religiosa foi realizada pelo arcebispo da Bahia, dom Manoel Joaquim da Silveira, confirmando seus votos perante a igreja. Ajoelhado em almofadas bordadas a ouro, o casal ouviu as palavras cerimoniais do insigne religioso. A princesa trajava vestido de filó branco com renda de Bruxelas e uma grinalda de flores de laranjeira. Já o noivo, trajando farda de marechal, trazia a Grã-Cruz do Cruzeiro, a comenda de Ordem Militar da Espanha, a comenda da Ordem da Casa de Saxe e a medalha da Companhia de Marrocos.
Após a festa, com a presença de autoridades de várias partes do mundo, o casal imperial saiu em lua de mel, ocorrendo uma viagem para Petrópolis, onde os ares e o clima são muito parecidos com os da Europa.
Uma vez realizada a lua de mel, o casal retornou ao Rio de Janeiro, passando, desde então, a residir no palácio, local em que recebia para festas de gala a fina flor da sociedade carioca, residência em que aconteciam encontros com lideranças políticas e econômicas do Brasil de então, além de se dedicarem em tempo integral a trabalhar em benefícios da casa imperial e do povo brasileiro.
Foi nesse imóvel que a família teve seus três filhos – Pedro de Alcântara, Luís e Antônio. Ali os criou e os educou.
Portanto, é incontroverso que o palácio ou Paço Isabel seja patrimônio familiar de princesa Isabel. É também incontroverso que princesa Isabel teve uma participação fundamental na evolução política e cultural do Estado brasileiro. Na ausência de seu pai, o imperador dom Pedro II, ocupou a liderança político-administrativa do Brasil. Manteve o País unificado e indivisível. Em 13 de maio de 1888, aliou-se aos movimentos populares abolicionistas, assinando a Lei Áurea, de número 3.353, conferindo a libertação dos escravos, tornando-se um dos símbolos mundiais do abolicionismo, ocupando, naquela oportunidade, a função de Princesa Imperial Regente do Brasil, em função da ausência do pai, o imperador.
Apesar de dedicar-se à defesa da união do Brasil e de sua gente, sofreu toda sorte de perseguição após 15 de novembro de 1889, quando o império foi alvo de um golpe de Estado. Em dezembro de 1889, decreto baniu toda a família real do Brasil e expropriou seus bens, sendo a morada alvo de invasão e saque. Em 1890, constituiu como advogado e defensor o conselheiro Ferreira Viana, que impetrou ação contra o esbulho possessório. Mas, sem qualquer garantia do instituto da segurança jurídica, o caso foi julgado em 1897 em tribunal pelo juiz Godofredo Xavier Cunha. Este magistrado era inimigo da família real, pregava o regime republicado. Tinha interesse no resultado. Não poderia ter julgado.
Desde então, a defesa tentou repetidamente recorrer da sentença, mas sempre sem êxito. Quando o casal imperial foi prestar contas com Deus, o processo foi esquecido em alguma gaveta dos tribunais. Ninguém sabia dizer onde se encontrava. Somente na década de 1950 do século 20, os herdeiros da família imperial finalmente conseguiram provocar o Poder Judiciário, que prometeu decidir a questão. Ledo engano. Desde então, um sem número de advogados se sucedeu, sem conseguir ter resultado para essa questão histórica.
O País mudou muito ao longo de 123 anos. Passou por altos e baixos, por democracias e ditaduras, por crises econômicas e desenvolvimento. Nos últimos anos, vive sob o estigma da corrupção generalizada, que mantém este País em permanente atraso social e econômico, graças a uma elite criminosa impune, que sempre recebe benefícios oficiais, como a revogação de penas e indultos. Mais grave: o Paço Isabel foi ocupado por gente da qualidade dos governadores Cabral e Pezão, que deixaram o Palácio num camburão presos por roubo e corrupção. Porém, o que incomoda mais ainda é a letargia e a indecisão do Poder Judiciário desta terra.
Como podemos dizer que existe Justiça num País que não consegue decidir uma demanda jurídica que acaba de completar 123 anos, cujos autos as traças já estão a destruí-los? Já não basta o que aconteceu com o Palácio Imperial, que se tornou sede do Museu Nacional e foi destruído em 2018 por um incêndio, sinistro este resultado do abandono promovido por quem deveria zelar por ele?
Luiz Malavolta é jornalista em São Paulo.
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