“Há algo de novo e cruel no luto relacionado a mortes pela Covid-19. Sob o risco de contaminação pelo novo coronavírus, algumas etapas que seriam fundamentais no processo de construção de sentido e aceitação da perda foram suprimidas: sem o acompanhamento do doente em seus últimos dias no hospital, com velórios suspensos e sepultamentos rápidos com poucos familiares à distância e com caixões lacrados, ficou difícil se despedir.
— A morte pela Covid-19 é uma morte afetivamente desamparada. Do lado da vítima, que até bem pouco tempo antes não tinha nenhuma perspectiva imediata de morte, não há ninguém para segurar a mão, e, se tiver, será de luva. Para quem fica, a perda repentina sem a despedida traz complicações unitárias potenciais e inumeráveis— diz Ana Claudia Quintana Arantes, médica com pós-graduação em Psicologia e Intervenções em Luto pelo Quatro Estações Instituto de Psicologia.
Especializado em luto, o instituto em São Paulo oferece suporte psicológico a indivíduos, grupos ou famílias que sofrem com os riscos de processos de luto complicados. Com a pandemia, a empresa desenvolveu serviços específicos de atendimento para casos relacionados à Covid-19, como um grupo de apoio voltado a profissionais de saúde que atendem às vítimas do coronavírus.
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP e cofundadora do Quatro Estações, Luciana Mazorra, também alerta para o prejuízo ao luto causado pela alteração nos formatos de velórios e sepultamentos.
— Estes rituais têm um papel importante, pois são espaços protegidos e autorizados para a manifestação da dor, com a possibilidade de receber o apoio social. Em diferentes religiões, eles eram, até então, momentos organizados e previsíveis, onde se podia homenagear o falecido, despedir-se dele, tentar atribuir sentidos à morte. Uma organização dentro da desorganização da perda. — explica Luciana, que sugere a realização de rituais alternativos virtuais e a atenção sobre se é o caso de procurar a ajuda especializada de um psicólogo.
— O processo é muito individual e as reações são diversas, mas a perda pela Covid-19 é um fato de risco potencial para um luto traumático — diz a médica.
Luto na pandemia
– O processo de luto é muito individual e as reações de sofrimento são diversas. Assim, cuidados e caminhos seguidos por um podem não valer para outro. De qualquer forma, é importante ter ciência de que perda pela Covid-19 é, por si só, um fato de risco potencial para um luto traumático, merecendo atenção na sua condução pela comunidade de apoio ao enlutado, que deve ser delicada e sensível.
– Rituais de passagem, como velório e sepultamento, são importantes na construção de sentido da perda e para o processo de recuperação do luto. Na impossibilidade de sua realização nas formas convencionais, elaborar algum ritual que faça sentido para familiares e amigos próximos e que possa ser realizado remotamente pode ajudar. Velórios e missas virtuais são um caminho, assim como o uso das mídias para alguma homenagem póstuma, marcando a despedida e o apoio social. Ferramentas como a do site rituais.infinito.etc.br dão suporte à realização de rituais virtuais de despedida.
– A experiência de não estar junto com o ente querido em seus últimos dias ou o pensamento de que algo poderia ter sido feito de forma diferente pode gerar sentimentos de culpa entre as pessoas próximas. Se esse é o seu caso – e a menos que a culpa tenha a ver com processos anteriores da relação mal resolvidos e cuja solução deveria contar com a ajuda especializada de algum psicólogo -, aceite a impotência da ocasião e entenda que o que se deixou de fazer foi por impossibilidade e não por escolha.
– Tente, na medida do possível, lembrar-se dos aspectos positivos da relação e do amor envolvido, de forma que eles se sobreponham aos sentimentos e lembranças negativos dos últimos momentos.
– O apoio a quem está de luto é fundamental, mesmo que à distância. Se é parente ou amigo da pessoa próxima ao falecido, ligue para saber como ela está e ofereça acolhimento. Não a deixe sozinha em sua dor, a menos, é claro, que ela queira, o que você deve respeitar. Além do sofrimento da perda, esta pessoa deve estar isolada pelo risco da doença (se já não estiver doente) e talvez sofrendo o estigma da sociedade, que, consciente (pelo medo de contrair o vírus) ou inconscientemente (para não entrar em contato com a lembrança do risco iminente, para todos), pode se afastar neste momento.
– Além de oferecer o suporte emocional ao enlutado, ofereça ajuda. Será que a pessoa precisa que alguém leve seu alimento, faça compras ou algo semelhante? E que tal levar um livro?
– No luto, é normal a pessoa passar por uma série de reações ao sofrimento, que vão do esgotamento físico e emocional a dificuldades no sono, na alimentação e sensação de perda de sentido da vida. Respeite estas reações e o seu tempo, que é particular para cada um. Mas identifique se o volume de sofrimento não ceder após longo período e isto estiver atrapalhando a continuidade das funções da vida, buscando, quando necessário, a ajuda especializada de um psicólogo.
– A percepção do momento de buscar ajuda especializada pode vir do próprio enlutado ou de sua rede próxima de afeto, que deve ficar atenta não apenas ao alongamento dos sintomas de sofrimento, como à ausência absoluta do contato com a dor (em um processo de negação), a movimentos de ideação suicida e a fatores de risco de complicação do luto, como histórico de reações negativas a lutos anteriores ou estados depressivos.
– Nem sempre é necessário buscar a ajuda terapêutica especializada. A maior parte das pessoas pode resolver suas dificuldades com o luto acessando sua rede de apoio na comunidade, como amigos e familiares. Você não precisa sofrer sozinho e nem ter medo ou vergonha de pedir ajuda.
– Profissionais de saúde na linha de frente na luta contra a Covid-19 em hospitais podem precisar de um apoio extra na condução junto a pacientes (que podem falecer e estão sem acesso a recursos e longe de seus entes queridos) e seus familiares. Nas redes, são encontrados serviços e iniciativas de suporte emocional a este grupo específico.”
*Fonte: Luciana Mazorra, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP e co-fundadora do Quatro Estações Instituto de Psicologia, especializado em perdas e lutos.
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