A exposição prolongada ao sofrimento e ao estresse tóxico deixa sequelas físicas e emocionais que podem durar a vida toda
Por Helen Mavichian*
Rihab tem 10 anos e medo de ir para escola porque sabe que o local pode ser alvo de bombardeios a qualquer momento. Saeed, 3 anos, só dorme durante o dia, pois à noite tem pesadelos que o fazem acordar chorando e sair de casa correndo para fugir do ataque inimigo. Zainab conta que o irmão de 9 anos era um ótimo aluno, mas esqueceu coisas simples que havia aprendido na escola, como calcular um mais um e soletrar o alfabeto. Nour, 7 anos, sente o coração bater tão acelerado quando está assustada que seu peito chega a doer. Rihab, Saeed, Zainab e Nour são crianças sírias vivendo sob a guerra que há mais de dez anos causa destruição não apenas ao espaço físico e à infraestrutura do país árabe, mas tem efeito devastador também na saúde mental das crianças que vivem na área do conflito.
Os depoimentos integram o relatório Invisible Wounds (Feridas Invisíveis, em tradução livre), produzido pela organização não-governamental de defesa dos direitos humanos das crianças Save the Children, e investiga os impactos da guerra na Síria no bem-estar e na saúde emocional dos mais novos – o estudo foi divulgado em 2017, quando o conflito já durava seis anos. As mais de 450 entrevistas com crianças, adolescentes e adultos (entre pais e mães, professores e psicólogos) revelam o alarmante nível de estresse psicológico que afeta os pequenos e o risco de se criar a partir daí uma geração inteira de pessoas traumatizadas.
Síria, Ucrânia, Iêmen e Etiópia são alguns dos países em guerra neste momento, ainda que uns ganhem mais notoriedade e exposição que outros nos meios de comunicação. De acordo com o Unicef, no primeiro mês de conflito na Ucrânia (que já dura dois meses), 4,5 milhões de crianças e jovens tiveram que se deslocar internamente ou refugiar-se em países vizinhos – o número equivale a mais da metade da população infantil, estimada em 7,5 milhões de pessoas.
Experiências vividas na infância, quando o cérebro está em formação, podem impactar de forma duradoura o desenvolvimento psíquico, cognitivo e emocional dos indivíduos. No caso de crianças vivendo em situação de violência extrema, como na guerra, a exposição permanente ao estresse tóxico altera a química cerebral e o funcionamento de áreas relacionadas ao aprendizado, à memória e ao raciocínio – muitas apresentam atraso cognitivo e regressão no desempenho escolar, têm dificuldades de fala ou param de se comunicar, e perdem memórias relativas ao período de conflito. Também ficam mais agressivas e sujeitas a desenvolverem doenças mentais como ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático, além de problemas decorrentes delas, como uso de álcool e outras drogas e suicídio. Nos desenhos e brincadeiras, que é onde costumam manifestar o que pensam e sentem, é comum retratarem crianças se matando, homens-bomba, tanques e escassez de alimentos, situações que passaram a presenciar com frequência. Muitas falam que desejam morrer para ir ao paraíso, lugar onde imaginam poderem ficar aquecidas, comer e brincar. E podem surgir sintomas físicos, como dores, cólicas, febre e incontinência urinária. Enfim, tornam-se crianças emocionalmente destruídas e esgotadas.
Outro estudo, realizado pela mesma ONG com crianças sírias refugiadas na Turquia, revelou que 45% delas manifestaram sintomas de estresse pós-traumático (prevalência dez vezes maior do que a média mundial) e 44% tinham sintomas de depressão.
Como os adultos podem ajudar a lidar?
Para além da brutalidade dos ataques com bombas e mísseis, viver em guerra traz sofrimento e insegurança porque representa o fim de tudo que até então as crianças tinham como seguro e garantido: separam-se da família, abandonam a escola e os amigos, não há mais férias, brincadeiras e a rotina que tinham antes. Tudo passa a ser desconhecido e ameaçador.
É natural que pais queiram proteger os filhos pequenos do horror, mas não se deve mentir ou deixá-los sem respostas quando têm dúvidas sobre o que está acontecendo. Ainda que não tenham capacidade para entender os porquês geopolíticos, sociais ou econômicos do conflito, as crianças (principalmente acima dos 4 anos) conseguem compreender que existe uma briga entre países que está trazendo dor e perdas a elas e àqueles que amam.
Para as que estão inseridas na tragédia, é fundamental que tenham oportunidades de expressarem o que sentem e pensam, que tenham suas angústias acolhidas e suas perguntas respondidas com honestidade e em uma linguagem que consigam entender – por exemplo, contando histórias ou por meio de desenhos. Isso traz uma importante sensação de pertencimento e amparo. Só não se deve recorrer a imagens da guerra ou deixar que tenham acesso a esse tipo de material, que podem virar gatilhos para medo e trauma.
Para aquelas que testemunham o conflito pela televisão ou pela internet, como nós, brasileiros, também se deve oferecer explicações realistas, sem, no entanto, expô-las a excesso de notícias e imagens de violência, ficando atentos às suas reações físicas e emocionais e oferecendo apoio e afeto quando se mostrarem fragilizados. Os adultos podem, ainda, atuar como mediadores das notícias sobre a guerra usando-as para conversar com as crianças sobre a importância do diálogo, da tolerância com as diferenças entre pessoas e povos, de pensar no outro, de compartilhar e conviver pacificamente e do significado da esperança.
* Helen Mavichian é Psicoterapeuta especializada em crianças e adolescentes e Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É graduada em Psicologia, com especialização em Psicopedagogia. Pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em neuropsicologia e avaliação de leitura e escrita.
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